Bela, após um sábado de um ótimo passeio – na Cité des Enfants, que fica na Cité des Sciences & de l’Industrie, que fomos pra você conviver um pouco com crianças, o que tem sido raro nessa nossa aventura francesa – e um domingo de descanso e trabalho em casa, retornamos ao trabalho nessa segunda.
Minutos antes de sair de casa, o Maurice sugeriu mudarmos os planos do dia e, ao invés de irmos pro L’Épée, ficarmos por aqui, já que hoje precisaríamos fazer um trabalho de mesa, organizando o material coletado no fim-de-semana e preparando o que vamos fazer a partir de agora. E assim fizemos.
Conversamos um pouco sobre o que levantamos, e eu mostrei os excertos que selecionei do livro Infância Roubada, uma publicação recente extraordinária da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva, que está disponível para download gratuito no site deles (http://comissaodaverdade.org.br). Já tinha lido sobre esse livro, já que muitos amigos, sabendo da nossa pesquisa, tinham me enviado links de reportagens sobre ele, mas só consegui ter acesso a ele agora e, de fato, é um material riquíssimo. Vale muito a pena baixar e ler. Nem sei se legalmente é permitido, mas resolvi colocar na capa desse post uma imagem do livro que arrancou lágrimas enquanto eu lia. É a volta do José Ibrahim ao Brasil, abraçado aos seus filhos. Não bastasse o quanto sou suscetível – leia-se manteiga derretida – para questões paternas, ainda estou especialmente sensível às questões da ditadura e, principalmente, da infância, pelo universo que estamos mergulhados. Pra mim, essa imagem fala muito, em especial as expressões do pai, de olhos fechados, e do filho mais novo, no colo dele.
O Maurice insistiu nos vídeos das reportagens que ele tinha assistido na sexta, em especial no do Ernestinho, o Ernesto Carlos Nascimento, bebê de dois anos – a mesma idade tua e da Miranda quando foi exilada! –, que foi muito marcante pra ele, já que ele viu muitas possibilidades cênicas ali. Como eu e a Paulinha não tínhamos feito anotações específicas sobre o vídeo, apesar de termos visto, ele propôs que assistíssemos juntos (é bem curto, tem uns dez minutos) e compartilhássemos as nossas anotações sobre o que podemos aproveitar de material dali. O vídeo é esse:
A partir daí, compartilhamos os destaques de cada um:
Eu:
- Criança taxada como terrorista (Miranda pode ser taxada como bruxa também)
- Criança falando com o torturador: “não bate no meu papaizinho”
- Exilado ≠ Banido: perda da cidadania (procurar relato da mulher que levou 30 anos para conseguir os documentos de novo/Infância Perdida) – AI-13: inconvenientes, nocivos ou perigosos à segurança nacional.
- Pais, tios, avós: tanto da família, quanto companheiros (relato de quem teve vários pais)
- Ernestinho: os pais chegando em casa (em Cuba), e ele fugindo, se escondendo embaixo da cama
- Ernestinho salvou a vida do Lamarca – mudou a história
- Os depoentes estão sempre sorridentes, apesar de todo o sofrimento que relatam!
Paula:
- Criança com pijama, ou seja, foi presa durante o sono
- Carimbo na foto
- Sequestro dos embaixadores
- Corte do cabelo
- Mãe não consegue falar das crianças
- Termo “exílio branco”
- Orgulho dos pais
Maurice:
- O que aconteceu durante os 30 dias em que o Ernestinho ficou desaparecido?
- Situação cênica: Fazer uma entrevista com a mãe como situação
- Situação cênica: Consulta num pediatra/psicólogo (de preferência um psicólogo Castrista)
Foi uma conversa muito frutífera e esclarecedora. Por um lado, acho que as nossas (eu e a tua mãe) impressões serviram muito para aprofundarmos sobre o tema, discutirmos, afinarmos o discurso. Porém, me chamou atenção o olhar do Maurice, porque revelou muito da forma como ele – e o Soleil e a Ariane – pensam sobre a cena e o levantamento de material. Não por acaso, durante a sua fala ele citou o Le Dernier Caravansérail e o Les Ephémères, dois espetáculos recentes do Soleil, ao falar sobre essa questão da seleção e organização do material para a cena. Pra mim, até agora foi o momento de maior aprendizado nessa troca com o Maurice, dentre os outros tantos momentos incríveis que estamos vivendo. Para se ter uma ideia, esse material (os vídeos que ele viu) eu coletei pro processo de Nuestra Senhora de las Nuvens, mas lá o máximo que fiz foi passar pros atores verem e se alimentarem dessas informações. Tudo bem que se tratava de um espetáculo com texto já escrito, o que muda muito o caráter do processo, mas ainda assim não conseguimos – ou precisamos – usar o material de forma tão concreta quanto o que o Maurice propõe pra nós. Acho que essa etapa das improvisações, que vamos começar amanhã, é o crème de la crème do Soleil. Ele ainda deu algumas indicações para pensarmos (em especial a Paula) a cena:
- Trabalhar com elementos cênicos concretos. Se formos improvisar sobre a entrevista, ter tripé, câmera, iluminação, etc. Se for a situação do psicólogo, birô, divã, poltrona, talvez uma mesinha com xícara, chá, etc. Ele aponta que, mesmo que depois optemos por uma estrutura cenográfica simbólica, ou minimalista, sem os elementos reais, que é importante nesse primeiro momento, pelo menos, trabalhar com o ambiente concreto. Acho super bacana aproveitar a oportunidade para experimentar dessa forma que ele propõe.
- Pensar na improvisação com começo, meio e fim. Pode parecer meio óbvio, mas não é! Por exemplo, se pensarmos na cena da entrevista, ela pode começar com os testes de luz e som, microfone, etc, desenvolver com a entrevista em si, e terminar com a bateria da câmera que acaba e não se pode continuar.
- Criar as condições (técnicas, etc.) para que o ator possa de fato vivenciar a situação. Ele citou uma improvisação que fez com a Shasha, acho que no processo do Caravansérail, que ele fazia uma cena de um pai com sua filha, e tinha que falar em farsi (a língua Persa). Como ele não fala farsi, a solução que encontrou foi colocar, por trás de uma janela que fazia parte do cenário, uma cartolina com o texto escrito. Assim, ele pôde estar em cena com liberdade em relação ao texto para vivenciar a situação.
Ainda durante a conversa, lembrei do livro “É Preto no Branco”, do Washington Olivetto e Nirlando Beirão, sobre o Corinthians, que pode ser uma boa pista de estrutura da cena. É um livro com páginas brancas e pretas, nas quais as brancas são escritas pelo Washington e contam a história do Timão para um publicitário americano amigo dele, que veio ao Brasil para uma reunião, assistiu um jogo do Corinthians e se apaixonou pelo time. Ele narra a história a partir de um ponto de vista – dizem as más línguas – fabular, exagerando – dizem as más línguas – os feitos e títulos do Timão como, por exemplo, diz que o Pelé era do Corinthians mas, para reduzir a disparidade entre o Timão e os outros clubes – como se isso fosse possível –, nós resolvemos doar o Pelé pra um timinho praiano sem expressão. Por outro lado, as páginas pretas – dizem as más línguas – são as correções ou ajustes históricos dos fatos narrados, escrito pelo Beirão, o Washington sabiamente prefere chamar da “verdade dos outros”. Lembrei do livro porque acho que essa estrutura poderia ser interessante pra nossa obra: transitarmos entre a fábula shakespeariana e os “ses” da Miranda, ou seja, por exemplo, e se a Miranda tivesse ficado em Nápoles, órfã; ou se a mãe dela fosse viva e tivesse ficado na Itália quando o Próspero foi embora; ou se a Miranda e o pai tivessem sido presos; ou ainda como seria a volta da Miranda pra Milão e a adaptação dela ao novo mundo. Esses “ses” seriam as histórias que estamos coletando, que realmente aconteceram com, logicamente, o tanto de licenças poética que desejarmos nos fazer valer.
Enfim, acho que foi um dia super produtivo e necessário de trabalho. Estou muito ansioso pra entrar em sala amanhã e começarmos a mexer cenicamente nesse material.
Ah, esqueci de dizer que, durante essa reunião de hoje, tivemos mais diversas intervenções do “petaco” tão ou mais geniais do que as da reunião anterior. Dessa vez, não filmei.
Assistindo ao vídeo, me peguei pensando em como o tempo histórico se faz abstrato para mim, como uma realidade (ou uma ficção) que sempre parece estar muito mais no passado do que realmente está. Me parece muito mais cabível, mais crível, pensar num estado absolutista e ditatorial na época d’A Tempestade, do que há quarenta, cinquenta anos atrás, no Brasil!
Sempre me surpreendo com essa questão de que a história está sendo feita diariamente, o tempo inteiro, e o quanto não somos ensinados a observar isso. Como esse tipo de tortura ocorria há tão pouco tempo em nosso país? Nos tempos atuais, também me vem muito um medo de as conquistas democráticas, que parecem tão sólidas (como tudo parece sólido e estabelecido para sempre quando você é criança), virem a ruir em breve. Como se posicionar a isso politicamente, mas sobretudo, artisticamente? Como não parecer um arauto de uma tragédia não-anunciada, mas ao mesmo tempo alertar para uma possibilidade que espreita à esquina? A questão da memória de algo recente me parece boa. A verdade – e 2015 cada vez mais está me provando isso diariamente (às vezes várias vezes no mesmo dia) – é que não há estabilidade nunca, e o mundo (e eu também sou o mundo) está em constante ebulição, transformação e movimento.
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Engraçado, lendo, assim que terminei de ler as anotações de cada um sobre o vídeo, pensei “caraca, que outro foco que o Maurice levanta, incrível”. E aí Fernando comenta exatamente isso no post. Me lembrou aquelas adivinhações que pra resolver, é preciso ter um “pensamento lateral”. Pq sempre vamos por um caminho um tanto quanto acostumado, e aí, quem tem pensamento lateral, mata a charada. E aí, uma possível proposta de encenação, baseada nos “e ses”, seriam como pensamentos laterais sobre a Tempestade. Sei lá.. viajando aqui. rs
Protesto: sem vídeos de Belinha e seus petacos sobre o petaco, não leio mais!!!!
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A Paula como tudo que gira em torno a Tempestade. Paula como Miranda revisitando a Tempestade (real ou escrita). Paula como Isabela revendo o auto exílio dos país para a pesquisa pra Tempestade. … Muito “se” que permeiam…
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Muito forte essa matéria sobre as crianças como presos políticos. Sinto que toda vez que essas memórias relativa as crianças na Ditadura me atingem de um jeito que nunca mergulho demais nessas matérias me doem em um lugar mais profundo. Ernesto estava ali, grande e saudável. Sobrevivente.Que sombras ainda pairam? É possível dissipar todas? (O site da Comissão da Verdade citado acima não está mais no ar, em 2020 o Google mostra esse: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/ ).
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