06: On continue

Bela, se na semana passada eu disse sentir um gostinho forçado de rotina, ainda no segundo dia de trabalho. Hoje, já posso dizer que essa rotina se estabeleceu de fato, e é muito bom sentir isso!

Apesar de muito menos charmosa e impactante do que a sala do Soleil, a nossa salinha do L’Épée tá ficando cada dia mais aconchegante, cada dia mais… nossa!

Hoje repetimos a dinâmica de horários de ontem, mas hoje conseguimos chegar ao meio-dia, conforme combinamos. Pra isso acontecer, não demos banho em você, Bela, e já te vestimos com parte da roupa de hoje pra dormir ontem! Rsrs… Funcionou…

Chegamos lá e conseguimos pegar ainda um pouco do trabalho do Maurice com a tua mãe do Navarasa. Apesar de ter pego só o final, foi possível ver o quão bonito o trabalho é. Mais bonito ainda foi ver o Maurice e a Paulinha trabalhando juntos, frente a frente. Aliás, é sempre muito bonito ver o Maurice trabalhar. Adoro quando ele resolver demonstrar alguma coisa, porque aproveitamos para nos deleitar um pouco com sua forma de atuar.

Passado isso, começamos no Shakespeare com a canção de Ariel, que é o retorno dele após o Caliban ir embora. Conforme a ordem do Próspero, Ariel vem vestido de ninfa e canta uma canção. Começamos, como sempre fazemos, com uma leitura, com a Paula sentada da cadeira (e eu lendo um ou mais personagens também). Passado isso, fomos à cena. No lugar da canção sugerida pelo autor, o Maurice colocou uma música chamada “Los Peces”, de uma cantora americana-canadense de origem mexicana, que morou na França até morrer precocemente, chamada Lhasa de Sela. A sugestão se deu pela temática marítima, como é mais ou menos a canção original. Além disso, como o Ferdinand revela, a música é muito bonita.

O primeiro impulso da tua mãe foi ir pra uma dança que lembra as danças sensuais do oriente médio, inspirada pela música. No entanto, o Maurice logo pediu pra ela deixar a sedução de lado e buscar uma movimentação mais inspirada na água – já que o Ariel é fogo, na primeira aparição –, e o resultado foi uma improvisação muito divertida, diferente.

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Daí já seguimos para o Ferdinand, que estava triste e solitário, ouvindo a canção, se encantando e, em seguida, já encontrando a Miranda. É fato que essa cena é mesmo muito bonita, esse amor juvenil dos dois, e fica ainda mais bela se deixamos de lado a carga romântica. Como diria o mestre Marcio Aurelio, “o romantismo só vai surgir daqui a duzentos anos!”. Em Shakespeare, estamos lidando com um texto que transita da idade média ao renascimento, longe dessa influência romântica que somos habituados a ver por todos os lados hoje em dia.

Em meio ao ensaio, de repente algo me distrai da atenção que estava: você, passeando e dançando ao meu lado, estalando a língua, coisa que aprendeu a fazer há pouco tempo. Me desliguei um pouco da cena e fiquei observando aquilo, imaginando o Próspero imerso em tensão, preocupado se aquela frágil canoa iria aguentar por muito tempo, se as provisões que eles tinham no barco eram suficientes, se eles sobreviveriam, enquanto a Miranda fazia a mesma coisa que você: dançava e estalava a língua, sem a menor compreensão do vulto daquela situação limite que eles estavam passando. Seguro que o Próspero se alimentou e tranquilizou com aquilo! Como ele mesmo diz, quando a Miranda lhe diz que ela deve ter dado muitas penas naquela situação:

Pois me salvou, meu anjo. O seu sorriso,

como uma força divina me inundou.

Quando eu verti no mar gotas de sal,

gemendo com essa carga, ela me trouxe

a coragem crescente de aguentar

o que estava por vir.

Acho linda essa fala, quantas e quantas vezes já não passei exatamente por isso nesses quase dois anos e meio que vivo essa experiência de ser pai!

Bom, retornando ao ensaio, exploramos a paixão e o deslumbramento do Ferdinand (principalmente) e da Miranda. Como o Maurice sempre insiste, o foco do trabalho foi trazer o estado dos personagens para o corpo. A Paula conseguiu fazer um trabalho bem interessante, explorando o mesmo estado para personagens de gênero diferente! Conversamos um pouco ao final do trabalho para reforçar como o Shakespeare indica todos os estados em suas palavra, basta fazermos essa prospecção. De fato, é incrível!

Terminamos o trabalho pontualmente às 15h, pois o Maurice tinha espetáculo hoje. Fomos com ele ao Soleil ajudar a companhia a arrumar o espaço: aspirar o foyer, peneirar e limpar as pétalas de rosas que são usadas em cena, organizar todo o enorme cenário de forma a ficar tudo pronto e na ordem certa para entrar no palco, enfim, uma atividade muito bacana e que nos coloca mais próximo ao Soleil, o que é incrível. Faz dessa experiência ainda mais especial, já que ampliamos a troca para além do Maurice. É muito bom falar com todos, que são muito simpáticos e solícitos, encontrar a Ariane e ser reconhecido, assim como a Juliana, enfim, que convivência tão especial essa que estamos podendo experimentar!

A propósito, hoje você nem deu trela pra Ariane. Ela veio toda animada falar com você, e até um bonjour você recusou a dar! Abusada!

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5 comentários sobre “06: On continue

  1. Paulinha, Fernando e Belinha,
    Acabei de ler todos os posts – de uma vez só, porque não consegui parar – e estou bem emocionada… por várias razões, eu acho.
    Talvez porque vivi o que Belinha vive com vocês, nasci vendo de perto e fazendo “o trabalho de teatro”, como ela diz… Dormindo nas coxias, desenhando nas salas de ensaio, observando encantada, dançando junto, imitando… E nunca mais consegui parar.
    Talvez porque identifico-me demais quando Paulinha diz que o teatro é sagrado, é seu espaço de equilíbrio espiritual…
    Emociono-me com o que aconteceu aí, tão pertinho de vocês, com o relato da marcha e da boneca La République. Sinto-me unida a vocês nesse sentimento de que estamos juntos, como artistas, buscando falar ao mundo da nossa forma, com nossa arte. Com precisão técnica, mas cheios de verdade, vida e poesia.
    Emociono-me ao constatar, mais uma vez, a “contemporaneidade” de Shakespeare, a sua imensa habilidade de nos apresentar o humano… e de dar para nós, atores, o presente das palavras carregadas de imagens, estados, ações! Emociono-me com o trabalho que está sendo realizado por vocês, e que busco tanto para mim e para meus alunos: encontrar esse corpo das palavras, e ainda com o auxílio precioso da música…
    Por fim, emociono-me com a fala de Fernando ao ver Belinha dançando e, como Próspero, ser invadido por esperança. Aquela fala é realmente linda…
    Gratidão por compartilharem esse processo. Viajo para Campinas sábado, para também iniciar um processo com Raquel, alimentada, instigada, provocada da melhor forma possível por vocês.
    Deixo beijos e abraços imensos para os três e os melhores desejos para o trabalho e para a vida (que no nosso caso é difícil de separar, rs).

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    1. Nossa, Mayra!!! Que comentário-post lindo! Se você se emocionou daí, o mesmo aconteceu de cá! Pelas tuas palavras, fica muito claro que nós somos feitos da mesma matéria, que é, como o Próspero mesmo diz, a mesma de que se fazem sonhos, e essa vida se encerra num sono. Que legal que você vai encarar essa jornada com a Raquel também! Gente muito querida e grandes artistas juntas! Espero que, dessa vez, eu possa colaborar pra pagar a minha dívida com você! Beijos e continue comentando!!!

      Curtido por 1 pessoa

    1. Além dos inúmeros privilégios que estamos tendo nesse projeto, ainda ganhamos um bônus que tem sido esses comentários no blog! Quanta gente tem proposto reflexões, sensações, contribuindo com outras referências e sugestões. Bom demais!

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