14: Girando

Bela, hoje tivemos que te arrancar da cama cedo pra começarmos a ensaiar no novo horário, das 10h às 14h. A sorte é que você tem um humor maravilhoso quando acorda: demora um pouquinho na preguiça e, de repente, se levanta num sorriso lindo! Só não sei de quem você herdou isso, porque dos teus pais é que não foi! Pra completar, hoje foi o dia mais frio desde que chegamos aqui! Durante o dia, a sensação térmica chegou a -5o! Pela primeira vez, ensaiei de casaco!

Chegamos na sala e conversamos sobre como iríamos fazer hoje, na cena da criança. A Paula disse que tinha duas propostas, e resolvemos então vê-la. Antes, o Maurice foi ao Soleil buscar alguns elementos de cena, como tem sido a nossa rotina. Enquanto a Paulinha aquecia, coloquei “Enquanto seu lobo não vem”, do Caetano, que finaliza uma das reportagens da série da Record sobre criança e tortura que tem nos inspirado. Não conhecia essa música, e achei incrível! De fato, apesar de não ter paciência pro Caê contemporâneo, a produção musical dele é fantástica.

O Maurice chegou com uma mesa grande, com rodinhas, e eu comentei sobre a música, até porque ele tinha me pedido para procura-la, quando assistiu o vídeo. Conversamos sobre o título da música, e nós contamos (e cantamos) pra ele a música e a brincadeira no Brasil. Eis que ele nos revelou que existe o mesmo jogo na França, mas a música é bem diferente, chama-se Promenons nous dans le bois (Caminhemos pelo bosque), e é assim:

Fiquei imaginando possibilidades dessa brincadeira do lobo, assim como do Marcha, Soldado, atirei o pau no gato, e outras músicas infantis que podemos usar de alguma forma num sentido mais violento. A ideia de pegarmos uma música dessas em francês e criar uma versão em português, para evitar o reconhecimento imediato por parte do público, pode ser interessante também!

Bom, fomos à cena. A primeira proposta da Paulinha se passava na rua, na entrada da casa da Miranda/Márcia (não sei se eu já comentei aqui, mas a Jovelina virou Márcia, fruto da pesquisa que fizemos dos nomes mais comuns no Brasil nas décadas de 40 e 50, mais ou menos quando a Jovelina nasceu), e a Miranda, mais velha, voltava sozinha da escola e, na entrada da casa (pelo que pude imaginar, na garagem ou jardim), via chaves, uma boneca, roupas, sapatos e outras coisas jogadas pelo chão. Em seguida, pegava algumas das coisas, tentava entender o que tinha acontecido e ficava brincando com os objetos, solitária, meio melancólica.

Acredito que a cena tem um bom potencial, apesar de ter sido meio confusa, com uma ação não muito definida. Mas havia uma poesia latente, acho que tem possibilidades interessantes de desdobramentos. Pensei que um rastro de documentos e gavetas poderiam gerar uma boa imagem. O Maurice falou que poderia ser um sonho da Miranda, até porque a cena sugeria esse tom onírico.

A proposta seguinte da Paula foi uma consulta da Miranda à Cecília. Foi um material que, mesmo interrompido e interferido pelo Maurice antes que a primeira tentativa fosse concluída, rendeu uma exploração muito rica. Como deveria sempre ser, mas que nunca faço, dessa vez fiz observações tentativa a tentativa, e relato aqui:

1o exercício: O espaço tinha uma mesa ao centro, com papéis, uma jarra e um copo d’água e dois caramelos. No chão, um cobertor (provavelmente fazendo as vezes de um tapete) com uma boneca, um livro, papéis e lápis de cor. A Paula entrou muito tranquila como Miranda, numa situação de orfandade (temporária), outro país, exílio, pós-trauma de violência, etc. O Maurice interrompeu a cena, lembrando do medo, do trauma e da desconfiança daquela criança em momento de tal fragilidade.

2o exercício: O Maurice mudou a configuração do espaço. Tirou a escrivaninha da doutora, tirou o tapetinho, e usou um banco com rodinhas como mesa, e a boneca em cima. Ele amarrou um cordão nesse banco e, quando a ação começava, ele puxava a mesa pelo cordão. Lembro aos desavisados (ou aos que estão começando a ler o blog aqui) que a estrutura da cena está sempre em movimento circular, para contemplar ambos os lados da plateia. O Maurice também falou que é importante que a rotação aconteça sempre num só sentido, para causar uma espécie de hipnose na plateia, como um movimento contínuo. Assim que a cena começou e o Maurice foi puxando o banquinho, ao longo da extremidade do espaço que delimita a área onde você fica brincando, Belinha, e você foi acompanhando o movimento do banquinho, com a fita crepe no chão dividindo você e o banquinho. Não aguentamos e paramos pra assistir a cena, e tivemos que recomeçar!

Então o Maurice parou as improvisações para exercitar a caminhada da criança. A tua mãe ficou olhando você caminhar, teus gestos, e tentando reproduzir no outro extremo da sala. E voltamos pras cenas…

3o exercício: Em seguida, a cena foi feita. A cena basicamente trabalhou o estado da Miranda e a mesinha com a boneca que circulava em volta dela, gerando uma relação de atração e repulsa. A melhor imagem foi quando a Paulinha ficou parada, e a mesa a rodeava, gerando uma tensão interessante.

4o exercício: Mais uma reviravolta na estrutura espacial/cenográfica. Agora, o banquinho/mesinha pequena foi substituído pela mesa, que tinha saído antes. Em cima dela, papéis, lápis de cor e a boneca. Fizemos uma última passagem, experimentado algumas possibilidades com essa mesa: de frente ou de costas pra ela, embaixo, embaixo, mas com a cabeça pra cima, sempre estabelecendo uma relação de atração e repulsa com a boneca. Sem dúvida, foi a que funcionou melhor!

Saímos do trabalho com algumas pistas valiosas, seja do que experimentamos e surgiu nas improvisações, seja das observações do Maurice.

  • Em relação a essa estrutura do Les Ephémères, a importância do giro num só sentido e da sensação de se estar deslizando (seja na caminhada, sejam os móveis). Depois, lembrando do espetáculo, pensei no quanto era importante aquele recorte de ambiente naturalista limitado pelos carrinhos (espécie de skates) e os contra-regras/manipuladores aparentes para romper com qualquer possibilidade naturalista. Acho que precisamos encontrar a nossa forma de fazer o mesmo.
  • Sobre essa forma de atuar que o Maurice pede, o que pra mim deu uma clareada foi quando ele pediu pra Paula esquecer a psicologização, e focar só no estado.
  • Da estrutura dramatúrgica tivemos um bom insight também que foi a possibilidade de fazermos diversas consultas da Miranda, que vai se soltando a cada vez que encontra com a Cecília.

Pra concluir, a ótima notícia é que teremos o L’Épée na semana que vem também! Apesar da certa frustração que tive ao entrar lá pela primeira vez, por já ter criado uma certa intimidade com a sala de ensaio do Soleil, e pela diferença de porte, fui gostando cada vez mais da nossa salinha, criei uma afeição muito grande por aquele espaço, que tem sido muito generoso conosco. Que bom que ficaremos mais um pouco lá! Na semana que vem, para agradecer ao Antonio, administrador do espaço, e a todos do L’Épée, vamos fazer um almoço brasileiro pra eles, provavelmente uma moqueca.

3 comentários sobre “14: Girando

  1. Fê,
    Vamos lá… fiquei pensando no que você escreveu, e sobre encontrar uma maneira “nossa” de vocês fazerem referência às estruturas cênicas do Les Ephemeres, pensei num navio. E se Miranda estivesse num navio que aporta diferentes ilhas? Acho que caberia, como referência à Tempestade. Acho que poderia possibilitar leituras de retorno ao próprio país, ou de uma atmosfera onírica também, se for o caso…. Não sei, me veio bem forte essa ideia e essa imagem de um barco que aporta em diferentes ilhas (consultas?).
    Do lado de cá ainda não entendi direito (não sei se está definido também!) exatamente como se dará o embricamento entre A Tempestade e Marcia/Jovelina. Pensei que Miranda fosse o filho de Jovelina, e não Jovelina em si. faz sentido?
    O espaço bifrontal me parece interessante enquanto espaço de fronteira, de entre, o que acho que pode ser um conceito bem interessante para a encenação. entre duas terras, duas instâncias, ou tempos, ali está Miranda, flutuando entre ilhas de memórias, passados e invenções. Quem sabe?
    Beijos,
    Diogo.

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    1. Vamos lá, Di… Estou ainda processando a tua ideia das ilhas. Me parecer fazer um super sentido e ser uma ótima ideia, mas talvez porque já passam das 3h da madruga, o “célebro” já não funciona tão bem. Dedicarei mais tempo a isso amanhã! A Jovelina é a Márcia, e a Miranda é a versão feminina do Ernestinho, é isso mesmo! Quer dizer, é o caminho que temos até agora, não tem nada absolutamente certo, o momento é de explorações. E em relação ao espaço bifrontal, é excelente a tua observação. Já roubei pra mim! Rsrs… Beijos!

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      1. Legal, Fê!
        Ah, bacana a ideia da música infantil “importada”, que não seja reconhecível, mas que ao mesmo tempo contenha o jeitão de cantigas infantis que tem em todo o lugar do mundo 🙂

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