04: Golpe

Belinha, mais um dia de trabalho. Hoje, inauguramos a nossa nova casa, que irá nos abrigar até o fim da nossa jornada europeia, o L’Épée de Bois. O espaço é bem menor e mais simples, mas muito aconchegante, num tamanho mais que suficiente pra nós – o outro era um luxo para um trabalho com uma só atriz! – e bem quentinho, o que é importante!

 

 

Começamos a semana retomando a cena 2, que começa com a Miranda e o Próspero (que já tínhamos trabalhado na semana passada), continuando após a Miranda dormir e o Próspero chamar o Ariel. A Paula sentou numa cadeira, na área cênica, e leu o texto. Essa primeira leitura nos despertou o interesse em entender melhor o que aconteceu na Itália no acontecimento que o Próspero narra. Em primeiro lugar, o Maurice fez uma leitura muito interessante – e plausível, conhecendo as artimanhas da dramaturgia shakespeariana – que a insistência do Próspero em manter a Miranda acordada pode ser uma estratégia do bardo em chamar a atenção da própria plateia a essas informações, que são longas, mas fundamentais pra compreensão do desenrolar da peça. A outra coisa foi que dissecamos como se deu o golpe de estado do Antônio, e descobrimos que a estrutura é exatamente igual às dos golpes que aconteceram na América Latina:

 

  1. O postulante ao poder tira do caminho as pessoas que podem atrapalhar à sua volta e nomeia pessoas da sua confiança, da mesma forma que o Congresso Nacional Brasileiro foi dissolvido;

 

  1. O Antônio começa a difamar o Próspero para as outras pessoas, da mesma forma que o Jango era acusado de preparar um golpe comunista, etc.;

 

  1. Ele se associa ao Rei de Nápoles, um nobre maior e mais poderoso, como os militares fizeram com os Estados Unidos;

 

  1. Deixa os portões da cidade abertos para a invasão dos soldados napolitanos, que expulsam o Próspero e a Miranda de lá, ou seja, o golpe em si (me lembra a tomada do poder no Chile, no assassinato do Allende).

 

O mais maluco disso tudo é que o Próspero se afasta do poder para se dedicar aos livros e “à sua Arte”, como ele chama seus poderes mágicos. Ou seja, o conhecimento, a sabedoria, a ciência, a arte, são subjugadas pela ganância por poder! O Maurice ainda comentou sobre a tentativa de golpe que os Duques de Essex e Southampton, ambos próximos ao Shakespeare, fizeram no intento de colocar o Jaime I no poder no lugar da Elizabeth, mas não tiveram sucesso.

 

Enquanto isso, você, Bela, dava menos sossego do que no primeiro ensaio. Acho que a salinha menor também dificulta, tanto por você ter menos espaços pra explorar, quanto por se sentir mais livre para fazer o que quiser, o que não é verdade! Ainda assim, com , lápis de cor, bonecas e iPad, fomos administrando, dentro do possível!

 

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Seguimos adiante! Foi a hora de uma dedicação maior à primeira aparição do Ariel. Primeiro a Paulinha fez só o trecho do Ariel, naquela estrutura de primeiro ler a frase, depois atuar. Em seguida, o Maurice pediu para eu ler o texto do Ariel e do Próspero, enquanto a Paula só atuava, sem falar. Focando na questão da corporeidade do Ariel, ele focou na fala em que ele cita como foi colocando fogo no navio, correndo por todos os lados e espalhando o terror. A senha foi provocar faíscas, eletricidade e fogo! Depois deixamos o texto um pouco de lado e fomos só pro corpo, ao som de Vivaldi. Foi um trabalho super extenuante pra tua mãe, que fez a sequência diversas vezes, buscando uma movimentação entrecortada, sons de estalos e faíscas, com um resultado bem interessante! Aos poucos, o texto foi sendo reinserido, e depois exploramos formas de encontrar um corpo mais contido, porém sem perder a fisicidade e a intensidade do Ariel explorada antes.

 

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A sua pobre mãe acabou muito exausta. Mas o trabalho andou bem. Algo me diz que o Shakespeare é quem vai nos convidar à discussão do exílio latino-americano. De fato, o bardo inventou o humano…

3 comentários sobre “04: Golpe

  1. Interessantes conexões… isso é uma das coisas lindas do processo… conexões… a princípio “inverossímeis”!
    PS: Paulinha já precisa de folga!! (sei que comento isso tarde e que ela não deve ter tido! 😛 rs

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  2. Nos textos secretos de Shakespeare estão as fórmulas de golpes na América Latina!
    Chamada de manchete. O suor da atriz é compartilhado comigo, a busca de dar corpo a imagens mentais ainda não sabidas. Desejo o tablado de madeira da sala de ensaio enquanto me impressiono com os detalhes. Percorrer cada dia e talvez registrar algo.

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