Bela, dia particularmente difícil pra mim… Corpo na França e cabeça no Brasil, onde o teu avô vai fazer uma cirurgia. Pelo menos o trabalho mostra a sua força em me manter, salvo pequenas recaídas, envolvido com o que estava acontecendo aqui.
Chegamos todos juntos hoje. Fiz o sacrifício de acordar mais cedo pra irmos juntos e começarmos todos às 11h da madrugada. Eu estava particularmente interessado em assistir o trabalho do Navarasa desde o início, e foi bom mesmo isso ter acontecido, pois hoje o Maurice passou os dois últimos sentimentos pra Paulinha, e depois brincou um pouco com ela, passando de um em um. De fato, é muito bonito ver esse treinamento deles dois. Como o Maurice comentou ao final, claro que o que eles estão fazendo é só uma amostra, já que os bailarinos e atores treinam isso por anos, em longas sessões, e não apenas uma demonstração como está sendo. Ainda assim, já é possível ver o resultado na aplicação na cena.
Na segunda parte do trabalho, optamos por pular (por enquanto) a cena 1 do segundo ato, na qual os nobres naufragados andam pela ilha com suas intrigas por poder, e passar para a seguinte, na qual o Caliban encontra com o Trínculo, o bobo, e o Stephano, um membro da corte (uma espécie de mordomo) que vive bêbado. A cena é engraçadíssima, mas é muito difícil conseguirmos estabelecer o jogo dos três com uma só atriz. Por causa disso, resolvemos também deixa-la em stand-by e seguir em frente.
A cena seguinte é a do reencontro entre Miranda e Ferdinand. A cena é muito bonita, as trocas de juras de amor, o desejo da Miranda desprovido de malícia, por não ter essa convivência social anterior, a forma como o Ferdinand se envolve também neste sentimento da Miranda, etc.
Para a infelicidade da Paulinha, os amigos tijolos voltaram à cena! Rsrs… Como na cena o Ferdinand carrega lenha, e repete algumas vezes que esse esforço todo não lhe é desprazeroso, por estar perto da Miranda, atacamos por aí! Os tijolos voltaram à sala, e o Ferdinand levava os dois tijolos de um lado para outro, e a Paula foi fazendo os dois personagens da cena.
O Maurice chamou atenção para o grau de tensão sexual que a cena traz. Isso se alinha muito à ideia pré-romântica do texto shakespeariano, porque a leitura do amor idealizado dos dois é praticamente inevitável ao nosso primeiro olhar, tamanha a “lobotomia romântica” que somos submetidos desde que nascemos!
Depois de uma pequena pausa, sentamos para conversar um pouco sobre o trabalho e organizar o planejamento da continuidade do trabalho, a partir de uma rápida conversa que tivemos de manhã antes de sair de casa.
Entendemos que o trabalho tá andando muito bem, e que já temos um bom primeiro contato com a obra shakespeariana, seus personagens, etc. No entanto, o Maurice acha que é hora – e nós concordamos – de começar a pegar no material do exílio e da ditadura, que deixamos de lado até aqui. Eu indiquei que acho que o interessante é tentar fazer com que o material dessa temática surja a partir do que a Tempestade nos trouxer, como já aconteceu em dois exemplos: um, que eu já citei aqui, é a semelhança do golpe do Antônio em Milão ao golpe civil e militar acontecido no Brasil, assim como de outros países da Latinoamérica; o outro, que apareceu no ensaio de hoje, que foi vislumbrar um pouco a condição da Miranda durante e no pós-exílio, já que ao final da peça ela volta pra Itália pra se casar com o Ferdinand e “serem felizes para sempre”: Ela foi criada junto à natureza, próxima à magia do seu pai, alheia ao convívio social, etc., e construiu sua vida e visão de mundo desta forma. Será que ela conseguiria adaptar-se a essa vida tão diferente, longe de todas as suas referências até então? Por coincidência, hoje pela manhã li um trecho da dissertação da Tatiana Moreira Campos Paiva (para os íntimos, a DJ Tati da Vila), uma historiadora carioca que fez seu mestrado em cima da questão do exílio na infância, chamada “Herdeiros do Exílio: Memórias de Filhos de Exilados Brasileiros da Ditadura Militar”, que falava exatamente sobre isso:
Assim como Flávia, Thiago de Oliveira permaneceu oscilante entre o Brasil e a França. Thiago, nascido em Paris em 1973, veio para o Brasil após a anistia, mas só esteve aqui por um ano. Segundo ele, seu pai não se readaptou a um país que tinha se tornado estranho: “Não conseguia mais se relacionar com seus amigos. Perdeu as referências. Naquele ano, conversou mais sobre Marx comigo do que durante todo o exílio”. Pai e filho voltaram para a França, e Thiago permaneceu lá até completar dezoito anos: “Na França, eu era brasileiro. No Brasil, sou francês”.
Não tenho (mais) muita paciência com a academia e vou me permitir a não colocar a referencia bibliográfica, conforme as normas da ABNT, etc, etc, mas indico que, quem quiser ler a dissertação da Tati, é possível baixá-la aqui: http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/9056/9056_1.PDF.
Pra mim, a Miranda não durou mais de um ano na Itália! Rsrs… Aliás, eu tava aqui pensando com meus botões: se essa lógica é a regra, acho que você não vai é querer parar quieta em casa quando crescer, Bela, vai ganhar o mundo e abandonar a gente em Natal!!!
Decidimos então entrar na próxima semana nessa temática. Mostrei um pouco do material que eu tenho sobre o exílio pro Maurice – vídeos e textos –, e no fim combinamos que amanhã o trabalho será de pesquisa, em casa, até porque ele tem uma reunião super importante mais cedo no Soleil, na qual a Ariane vai conversar com o grupo sobre o próximo projeto deles!
Seguimos do L’Épée pro Soleil, pra nossa nova rotina de peão! Aspirar, carregar e arrumar cenário, peneirar pétalas – o que, diga-se de passagem, é muito prazeroso, pela convivência com todos do grupo, sem contar que ainda almoçamos com eles! Rsrs –, e decidimos ficar lá para assistir mais uma vez o espetáculo. Você, dessa vez, só aguentou a primeira parte (até porque foi à noite), o que já tá de bom tamanho, né?
Por fim, após a tarde/noite de muita espera e ansiedade, notícias do Brasil que a cirurgia correu muito bem e a expectativa de sucesso é muito grande. Ufa! Aliás, durante o dia lembramos que hoje é teu “mêsversário” de dois anos e cinco meses. De presente, ganhamos todos o Vovô bem, né? Agora sim, boa noite!
Fê, lendo esse seu texto, quando você cita o “Na França, eu era brasileiro. No Brasil, sou francês”, me lembrei de você mesmo falando da sua condição entre São Paulo e Natal. Não sei ao certo se você chegou a morar por aqui, mas lembro de, de orelhada, já ter ouvido você comentar algo a respeito dessa condição de paulistano-em-Natal e potiguar-em-São Paulo.
Mesmo tendo os seus pais de SP (e que bom que a cirurgia com seu pai parece ter sido tranquila), uma coisa que sempre me chamou atenção é o fato de você ter vivido toda ou grande parte da sua vida em Natal, e você não ter nem um pouquinho de sotaque potiguar! É incrível! hahaha. Mesmo o Rafa e o Ronaldo que também não são de Natal, ou nem do nordeste, têm mais sotaque do que você.
Bom, as contribuições de hoje não foram nada práticas, mas resolvi compartilhá-las mesmo assim 🙂
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Nossa, Diogo, vou cortar metade do teu cachê por não ter feito um comentário prático!!!!! (ok, pra contribuição não-prática, uma resposta anão-prática também! Rsrs…)
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Diogo, eu tenho pra mim que de alguma forma o inconsciente de Fernando faz com ele mantenha o sotaque, mesmo ele adorando Natal, parece uma maneira de continuar pertencendo à sua cidade.
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Uau! Que post! Maurice e Paulinha, Próspero e Miranda, Fernando e Belinha… e suas trajetórias ensinantes em mão dupla, ou tripla, ou quádrupla.
Exílio, quem vai, sempre carrega tijolos. Pois eles nunca mais se encaixam em nenhuma construção.
PS: Desculpem Yama e Paulinha, mas Deus queira que Belinha não se aquiete, literal e metafóricamente em Natal! 😀
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Também não quero, Vanina! É só o instinto paterno de querer a prole debaixo da asa!!!! Rsrs…
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