E a neve chegou! E eu que tava achando que, pelo andar da carruagem, não ia ter a oportunidade de te mostrar a neve, minha bela Bela! Nos pegou todos de surpresa, porque não tinha essa previsão pra hoje e, de repente: voilà! A sua mãe saiu um pouquinho antes que nós, com o Maurice, e ao telefone pediu pra pegar o gorro dela e disse algo parecido com “tá nevando”. Talvez pela falta de empolgação – já que ela, assim com você, também nunca tinha visto nevar –, achei que tivesse escutado mal, mesmo que, ao desligar o telefone, tenha dado uma espiada pela janela e tava caindo uma chuva um pouco mais densa, mas nada que ainda pudesse se chamar de neve. Mal botamos o pé na rua, ou melhor, antes de botarmos, no pátio interno do nosso prédio, não é que ela mostrou a cara!!!!??? Eu, que já vi algumas vezes – há muitos anos, é bem verdade –, não consegui evitar o encantamento, como “matuto” que vê o mar pela primeira vez. E você, meu amor, não entendeu nada muito bem, mas ficou também deslumbrada, a coisa mais linda de se ver! Claro que lembrou do Frozen, desenho que tem visto bastante nos últimos dias, aqui em Paris, e fica cantando e dançando interminavelmente: “Let it go! Let it go!” Enfim, melhor começo de dia de trabalho, impossível!
Bom, nesse ensaio que marcou um mês desde que chegamos aqui, foi relativamente curto, mas bem produtivo. O Maurice queria experimentar a criança – a Miranda, seja a da Tempestade ou a versão feminina do Ernestinho –, mas como a Paulinha tinha entendido que hoje iríamos trabalhar a pediatra/psicóloga, e preparou um material para isso, mudamos os planos e fomos a partir do que a atriz tinha trazido. O que ela tinha trazido, aliás, não era muita coisa, à exceção de algumas peças de roupa, uns brinquedos da Bela – que o Maurice imediatamente recusou, pois disse que temos que ter o nosso próprio material – e algumas ideias a partir do que tinha conversado com a irmã, cujo filho frequentou o psicólogo por algum tempo. Além do tempo estar um tanto escasso pra nós, ainda pensei um pouco sobre o tipo de material a trazer, que acredito que seja o pulo do gato nesse trabalho pra Paula. Ainda vai levar um tempo pra ela entender exatamente onde canalizar a energia fora do ensaio. Mas ça va…
Bom, conversamos um pouco sobre a cena da pediatra/psicóloga cubana, e o Maurice foi ao Soleil buscar alguns elementos de cena. Enquanto isso, fomos preparando as coisas na sala. Ao chegar, a proposta foi que a Paula fizesse a Cecília, uma pediatra/psicóloga cubana, que trabalha em condições precárias num hospital de Havana. A cena seria a Paula sentar num banco giratório e atravessasse de uma ponta a outra, girando lentamente o banquinho, enquanto falava ao telefone com o José, o diretor do hospital, reclamando que não havia condições mínimas para trabalhar. Para isso, logicamente, ela teria que falar em espanhol, ou ao menos em portunhol, que foi o que acabou acontecendo.
Fizemos e refizemos a cena diversas vezes, dando indicações, propondo coisas, chamando atenção para o calor que deveria estar em Cuba naquele momento, etc. Surgiu uma secretária, depois, que atendia antes de passar para o tal José. O foco, além de seguir praticando e entendendo essa lógica da construção da cena que o Maurice propõe, era exercitar as possibilidades do espaço, dos espíritos, enfim, dessa estrutura que se aponta para nós.
A partir dessas repetições todas, escrevi um pequeno texto para alimentar o exercício (por favor, relevem “mi malo español”…):
Hola, Margarida. Si, Cecilia, que tal? Necesito hablar con José. Como no? Es muy urgente, tengo que hablar con el ahora. No me importa que el está con un coronel, tengo muchos niños que necesitan de tratamiento, todos esperando al menos una sala para eso! No! No, Marg… Escúchame! Llama a el ahora! (espera). Hola, José! Como estás? Finalmente! Su secretaria es insoportable! Estimado, quedamos con los mismos problemas acá. No hay nada, los medicamentos no llegan, no hay enfermeros, todo está muy malo! Como hablar con Carlos? Yo ya he hablado muchas veces con él, pero nada se pasa! Tu eres el jefe, tienes que hablar con él para encontrar una solución! No sé más lo que hacer, los niños llegan de Brasil, de Argentina, de Chile, y los pobrecitos no comprenden nada que se pasa! No me interesa la política, no me interesa la revolución! (tira o telefone de perto da boca e diz para si mesma) Joder la revolución… (ao telefone) Me interesan los niños!!!!
Mira, ayer ha llegado acá una chiquitita de Brasil, llamada Miranda! Muy linda la pequeña… Tu crees que ella está acá sin sus padres, que están presos en Brasil? Y la pobrecita también estaba presa allá, fue torturada, con solamente dos años! Tu crees que ella fue considerada terrorista en su país? Hay una estampilla en su pasaporte que dice que ella es peligrosa para la seguridad de la república! Necesito ver la pobrecita muy pronto, José, pero no tengo ni una sala para eso! Habla con el comandante! Si, el comandante! Qué? Una urgencia? Si, lo espero, vaya. José? José? José? José? (até sair)
O Maurice saiu pontualmente às 15h pro Soleil e eu e a Paulinha (e você, Bela, logicamente) ficamos mais uma hora experimentando o texto no espaço, etc. Antes da saída dele, decidimos também que, apesar de não ser obrigatório pelo edital do MinC que nos trouxe aqui, vamos levantar um trabalho de 20, 30 minutos até o fim desta temporada, para depois continuarmos o trabalho. Porém, mais adiante falo sobre isso com mais detalhes.
Em seguida, fomos também ao Soleil cumprir nossa cota de socialização e colaboração na limpeza e preparação do espaço pro espetáculo. Ao terminarmos o mise en place, a Ariane chamou o grupo para conversar e, logicamente, nós ficamos no outro ambiente e nem chegamos perto. Depois todos fomos almoçar, e no almoço o Miguel um dos brasileiros que estagia no Soleil, comentou comigo:
Viu, não é só no Brasil que tem violência, né?
Me pegou meio de surpresa, até porque normalmente ele mal fala comigo, não sei se por timidez ou por não ir com a minha cara (ou simplesmente por falta de vontade, mesmo), e eu acabei respondendo algo tipo “pois é!”, e o assunto morreu aí. Depois acabei descobrindo – só ao final do espetáculo, para ser preciso – que o que aconteceu foi que o Duccio, um dos atores da trupe, no caminho pra Cartoucherie, de bicicleta, tomou uma pedrada na testa de um jovem, mas ninguém soube exatamente o porquê. Acabei não perguntando, mas tenho quase certeza que a reunião que a Ariane convocou era pra falar disso. E isso me causou uma grande reflexão nessa forma que ela e o Soleil aprofundam o pensamento sobre o que está acontecendo no mundo, na França, na Cartoucherie, no Soleil. E isso é fantástico. Acabou o almoço, você brincou muito com a “Aline grande” (a Aline pequena é a filha da Ana Amélia, também atriz do Soleil, que você conheceu essa semana), com o Arman “Malucão” e com a Ana Amélia, e enfim eles foram se preparar pra apresentação. O público foi chegando, amigos brasileiros inclusive, e fiquei impressionado como você já tá se sentindo em casa no Soleil, Bela! Ou melhor, no “Sonéi”, como você chama. Com o galpão que é o foyer, com o bar, etc, lotado, você saía sozinha, circulava por todos os lados, conversava com as pessoas, incrível isso!
Veio a apresentação e, mesmo sendo à noite, você aguentou firme o espetáculo inteiro! Ao final, um episódio curioso e muito marcante: uma mulher veio conversar conosco, perguntando se você não ficava com medo do espetáculo, Bela. Depois, falou que achava que era muito violento pra você, que ela mesmo havia ficado chocada, porque as cenas eram muito fortes, etc. Eu contra-argumentei que você já estava acostumada, que conhecia a todos, e que você nasceu no teatro, etc, mas ainda assim ela não se convenceu. Fiquei com isso na cabeça. É o contrário! Considerando, ainda mais, a sua privilegiada condição de assistir espetáculos adultos desde que nasceu, e entender muito bem a dinâmica do evento teatral – não pode falar, no máximo cochichar uma ou outra coisa, etc. –, o fato de você entender que aquelas pessoas estão em estado de representação só faz com que você aprenda cada vez mais sobre o mundo, mesmo que não de uma forma racional nesse momento, do que ser “protegida” disso. O que aconteceu com o Duccio passa por aí, pela violência de seres humanos contra outros, independente dos interesses que ali existam (talvez tenha sido uma tentativa de assalto), e que está nas palavras do Shakespeare.
Pra terminar o dia, ao chegar em casa comprei o e-book da tradução da Bárbara Heliodora – espero que ela não me decepcione dessa vez, como aconteceu com A Tempestade – do Macbeth, pra reler a obra, já que faz algum tempo que não a leio. Li só as primeiras cenas por enquanto, mas consegui entender muita coisa sobre a importância de assistirmos essa obra diversas vezes enquanto estejamos aqui, como forma de alimentação pro nosso trabalho! Independente de se gostar ou não de uma cena, ou do espetáculo como um todo, o que a Ariane propõe como leitura de Shakespeare potencializa a obra de uma maneira incrível, só ao ir para o “papel” (virtual) é que pude entender a dimensão disso. Não vou falar agora, pra não te encher demais. Farei outro post falando sobre isso em breve.
Ah, pra terminar o post, uma foto do nosso espaço, pra facilitar a visualização. Ontem acabei esquecendo de fotografar! Beijos, meu amor.
P.S.: Para concluir a noite, quando acabei de postar esse texto, uma cena que parece ter sido encomendada: quase quatro da madrugada e escuto fortes pancadas vindas da rua. Vou ver o que é, e são dois caras tentando arrancar aos chutes (ou seja, roubar) uma bicicleta do Vélib’, o serviço de bicicletas públicas de Paris! Não é preciso falar mais nada, né? (E, felizmente, apesar de muitas porradas e bem violentas, eles não conseguiram consumar o crime. Dos males, o menor…) Precisei voltar e publicar esse Postscript…
Fê,
O que estou achando mais incrível dessa experiência de vocês aí é perceber o quanto parece que tudo alimenta o processo. Parece que tudo que se passa ao redor pode ser captado e transformado em material para o espetáculo. Não sei se esse já é um olhar e uma percepção tuas, ou se é a influência do jeito de trabalhar do Maurice/Soleil, ou se é a questão de vocês estarem mesmo em um “retiro criativo”. De qualquer modo, esse trânsito entre todos os elementos desses diferentes mundos – a realidade da frança atual, o Brasil da ditadura, e a ilha dA Tempestade shakespereana, além de outros que você deve saber melhor do que eu – deve resultar em um espetáculo muito interessante, muito atual e muito humano.
Sinto que na faculdade, por incrível que pareça, conseguia ter mais foco e mais tempo para as minhas criações. Focar mesmo em um processo, como ocorreu nas minhas peças de formatura, e que depois de formado, no mundo real aqui de SPaulo, de estar dirigindo e ao mesmo tempo com a cabeça em mil outras coisas, não consegui voltar a ter essa qualidade de respeito e dedicação ao processo criativo.
Sinto saudades disso. De, de repente, até estar fazendo várias coisas, mas procurar fazer com elas alimentem o processo de criação. Enfim. Cada vez que comento aqui, faço quase um outro post! haha.
Abraços e beijos a todos!
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Acho que é um pouco de tudo, mas sem dúvida tem bastante influência do Soleil, além de estarmos mais isolados aqui, podendo ter uma dedicação ao processo que normalmente não temos – mas que sempre deveríamos! Continue com teus comentários-posts, que eu adoro!!!! Rsrs… Abraço, querido!
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Praticamente uma aula este post, Yama. Com exceção, é claro, do seu parco espanhol. rsrsrsrs Concordo com Diogo plenamente, a incrível sintonia das coisas. Eu acho que o mundo é sempre assim, coisas sincrônicas, a tal quinestesia dos view-points, apenas às vezes estamos atentos, às vezes não. Acho que é um estar atento distraídamente. Ou em outras palavras, usando uma expressão que adoro de um amigo meu, andar por aí de “olho froxo” facilita a visão. Bjs
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Querida, que bom que te tocou assim! Afinal, quando escrevo jamais imagino que alguém vá dizer que o texto será “praticamente uma aula”! De fato, acho que a grande lição desse processo está sendo essa vivência completa, em que tudo é importante e toda a experiência faz sentido pro trabalho. Quanto ao portuñol, por ora tá suficiente pra resolver pro exercício, ainda mais pra um autodidata na tua língua mãe. No entanto, ganhei de presente um lapso do teu português pra você parar de me encher: “frouxo” se escreve com “u”, argentina!!!! KKKKKKKKKKKKKK
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