17: Referências

Bela, hoje eu pedi pro Maurice e pro papai pra gente trabalhar em casa, meu corpo está todo dolorido por causa de uma gripe, e você também passou a noite e um pedacinho da manhã com febre. Eles toparam, o que foi ótimo, porque nós descansamos bastante e fizemos uma pequena reunião sobre o trabalho em casa.

Primeiro assistimos juntos a uma parte do vídeo do espetáculo Les Ephémères, que vem nos inspirando, especificamente uma cena em que duas atrizes representam crianças em um ambiente familiar. Maurice pediu que eu observasse na cena os signos, vozes, jeito de andar das duas atrizes enquanto faziam as duas crianças, pra me servir de inspiração pra nossa Miranda.

Foi ótimo ter visto a cena, porque apresentar uma criança, a Miranda nas nossas cenas de improviso ainda tem sido bem impalpável pra mim, principalmente dentro do tema que a gente vem trabalhando, o exílio. Estamos falando de uma criança que foi separada dos pais, e que os viu serem torturados, e eu não tenho muitas referências no teatro de crianças, as minhas referências são mais novelescas e de estereótipos de criança, o que não serve pra esse trabalho. Claro que tenho lido bastante sobre e visto vídeos também, mas ver a peça em vídeo me ajudou a perceber mais o caminho de construção da personagem que Maurice sugere, pois as atrizes conduzem as personagens com muita sutileza e objetividade na ações que realizam durante a cena, e eu acredito que quanto mais eu estiver familiarizada com o que a Miranda estiver realizando de verdade em cena, mais fácil será minha aproximação da personagem.

Ainda conversando sobre o trabalho, Maurice sugeriu que eu e Fernando buscássemos visões mais pessoais pro trabalho, relações de exílio na nossa história, na história dos nossos antepassados… Eu achei ótima a sugestão porque venho sentindo a necessidade de me aproximar mais com o tema que escolhemos, não se trata só de ler mais sobre o assunto, e não sei se vou conseguir me fazer entender por aqui, mas sim de encontrar algo que de fato eu queira comunicar com esse trabalho e que não sei o que é… Sei que quanto mais eu leio sobre esse período de ditadura da nossa história, mas percebo o quanto ela não faz parte das minhas memórias, em parte pela idade, e em parte porque a nossa cultura e educação no Brasil não contribuiu para isso. Me sinto exilada da história do meu país. Acredito que esse trabalho fale de memórias sim, mas que memórias eu quero falar? Qual é a minha verdade com esse trabalho? Ainda não sei, estou em busca disso. O que sei é que quando falo o texto de Shakespeare, da Tempestade, ele me inspira e me serve de guia, base para as minhas experimentações, e acho que Fernando teve uma ideia muito feliz quando sugeriu que a gente trabalhasse o exílio na infância e tivéssemos como base a Tempestade, e Maurice sabe encaminhar o trabalho com muita sabedoria por esses dois caminhos que estamos desbravando.

Uma coisa que tem sido curiosa, filha, é que às vezes sinto como se Maurice adivinhasse, ou mesmo conseguisse traduzir o que eu sinto, que nem eu às vezes sei o que é. Tipo, eu já vinha pensando sobre essa relação mais pessoal com o exílio, só que isso me vinha como uma inquietação que eu não sabia como explicar, mas estava ali, incomodando. Daí ele chega no outro dia e fala sobre isso. Eu poderia dizer que isso é coisa de bruxo, quem sabe? Mas sei que é também muita experiência que ele tem com o nosso ofício, e uma observação constante sobre o que eu venho fazendo nesse trabalho, e mais, uma forma sempre indagadora sobre o que precisamos hoje pro trabalho. O que nos falta? Me parece que manter a curiosidade, os questionamentos saudáveis sobre a vida, sobre o nosso fazer é algo muito valioso e necessário.

P.S.: Pra não causar estranhamento nos mais atentos (leia-se Diogo), esse é o único post meu que foi numerado no título, pois eu fiquei responsável pelo registro de hoje.

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3 comentários sobre “17: Referências

  1. Penso que a sua experiência, Paula, é a mais radical. Dois diretores, filha, uma mãe-atriz, uma atriz-esposa, se equilibrando no torvelinho gerado pelo movimento das suas mais íntimas sensações. Gostaria de dizer que sei como você está se sentindo, mas não consigo nem mensurar a experiência. Uma coisa é certa: verei o resultado!

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    1. Flecha, tem sido um processo que tem mexido muito comigo em todos esses aspectos que listou. Um turbilhão de sentimentos, e uma responsabilidade enorme pra fazer um trabalho sério e honesto. Obrigada por estar aqui conosco! Ah, também tenho lido seus posts no blog da Pequena Companhia, são muito legais! Eles tem me encorajado a escrever por aqui também, apesar de eu não conseguir manter a disciplina.

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  2. Muito intenso tudo isso. Não tenho o conteúdo teatral pra fazer o comentário que de repente pudesse engrandecer seu momento, sua construção. Queria poder. Mas me lembrei, lendo o texto, de uma amiga argentina que morou no Rio porque pai e mãe estavam presos pela ditadura. A mãe faleceu, e o pai está vivo. Dessa experiência veio o idioma. Ela hoje é professora de português em Rosário. Foi inevitável a lembrança. As experiências de vocês me fazem viajar.

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