Filha, começamos o dia comemorando uma marca muito bacana: o blog superou as 2.000 visualizações, e já tem quase 400 visitantes, em pouco mais de um mês de processo e blog! Muito feliz que tem gente que se interessa pelo que estamos fazendo e registrando!
Quando estávamos quase saindo de casa, o Maurice nos chamou pra sugerir um redirecionamento pra hoje, caso nenhum de nós tivesse alguma outra proposta específica: retomarmos o Shakespeare, mas agora nessa estrutura cenográfica que estamos trabalhando, e bem mais familiarizados. Ele alegou que ficou pensando, após a reunião de ontem, sobre essa não obrigação em fechar uma história nesse momento, e lembrou do processo do Les Ephémères, quando a Ariane resolveu dar uma parada brusca no processo pra retomar os clássicos, antes de retomar o que eles estavam fazendo, como forma de reafirmar uma segurança sobre o material que estavam trabalhando. Eu adorei, estava com muitas saudades da Tempestade, e acho que tem muito mais coisa lá ainda pra bebermos.
Voltei a reflexão que tenho tido quase todo dia, do privilégio de podermos tocar um processo como esse, sem compromissos, no qual podemos parar, repensar, reorganizar, nos dedicarmos com paciência ao que o processo pode nos oferecer. Sem dúvidas quando voltarmos ao Brasil, com certeza teremos muito material, mas nada fechado, definido. Já estamos pensando em um ou dois encontros durante esse ano, e acredito que teremos o trabalho pronto no começo do ano que vem. É certo que tanto a Tempestade, quanto o tema do exílio, têm muito a oferecer, e não devemos nos fechar nesse momento. Já que tivemos suporte (parcial) financeiro pra essa residência, mas não conseguimos ainda ninguém que acredite que esse projeto possa render um bom espetáculo, ouçamos o que os “sinais” nos indicam e sigamos tocando com parcimônia e sabedoria o processo. No final das contas, tenho certeza que foi muito melhor assim!
Chegando na Cartoucherie, começamos a retomada d’A Tempestade… pelo começo! Ato I, cena 01. A tempestade em si. Enquanto organizávamos as coisas e o Maurice escolhia a música, a Paula foi explorando as possibilidades de movimento. A ideia era usar o espaço como um navio, e ela fazer os marinheiros atravessando o convés da popa à proa, com dificuldades, pois o navio inclinava-se de um lado para o outro.
Propus o espírito entrar em cena, ou seja, ao invés da Paula imaginar um barco jogando-a de um lado a outro, o espírito puxar e empurrar, como de fato o Ariel o faz, causando a tempestade. A proposta funcionou, e passamos uma primeira vez, sem texto, em que eu fiz o espírito, ainda como um exercício de movimentação.
Em seguida, o Maurice assumiu o lugar de espírito, e passamos uma vez com o texto. Funcionou muito bem, experimentamos novas possibilidades desse deslocamento, mas ficou claro que fica muito difícil a Paula fazer os marinheiros no convés e os nobres que sobem pra encher o saco e fazer cobranças. Os estados físicos são muito diferentes. Isso me fez, mais uma vez, refletir sobre a possibilidade de, na continuidade do processo, convidarmos mais um ator pra cena, além do espírito, como já tínhamos sondado algumas vezes. Por coincidência, o Maurice falou exatamente a mesma coisa, assim que a cena terminou. É uma coisa pra pensarmos com carinho. Mais uma vez, são as vantagens desse processo lento, com tempo para experimentação e respiros. Quem sabe não é esse o caminho de reencontro do trabalho com o grupo, já que o projeto surgiu da pesquisa que fazemos lá, depois se configurou como um projeto independente, paralelo aos Clowns, mas não sabemos que rumo vai tomar.
Em seguida, passamos pra cena 2, da Miranda conversando com o Próspero, assustada com o que viu, e ele contando toda a história dos dois. O Maurice propôs fazer a cena com a Miranda caminhando junto com o pai, na mesma estrutura que experimentamos a Jovelina caminhando com o entrevistador, há algum tempo atrás.
Antes de irmos pra cena, o Maurice saiu e voltou com duas varetas, um cordão, e outras coisas mais, e começou a preparar alguns adereços que não sabíamos até então o que eram. E fomos pra cena.
Enquanto a Miranda caminhava com o pai, trazendo o mesmo estado da Miranda/Ernestinho diante da Cecília (medo e trauma), o Maurice vinha atrás com uma das varetas, com uma borboleta de papel alumínio na ponta. A borboleta acompanhava a Miranda enquanto caminhava, e ao chegar na extremidade da área cênica e voltar, ele deixou a borboleta e pegou a outra vareta, que tinha uma cobra amarrada. Voltou com a Miranda conversando com o pai, enquanto a cobra a acompanhava, até o momento em que o Próspero pede pra ela se sentar, para contar a história deles. Nesse ponto, demos uma pausa e pegamos o banco giratório, colocamos uma outra mesa maior, montando assim uma grande plataforma giratória. A Paula sentou-se em cima, e o Maurice foi manipulando primeiro a borboleta, depois passou a borboleta pra própria Paula e pegou a serpente, enquanto girava a plataforma e iam dizendo o texto. Em alguns momentos, o Maurice a girava só com um dedo, o que fazia do movimento muito delicado, bonito.
Duas outras coisas me chamaram atenção. Uma é que, enquanto a cena acontecia, e a Miranda ficava chocada com tudo que ouvia, ela “brincava” com os bichos sem nem prestar atenção, como uma coisa cotidiana, banal. Esse bichos, em especial nesse momento em que ela começou a interagir com eles, deu à cena uma ambientação super precisa, mas não só decorativa, e sim uma contribuição à dramaturgia, já que nos contava, sem precisar de texto pra isso, sobre toda a relação da Miranda com a natureza durante esses doze anos na ilha. A outra coisa foi como a Paulinha conseguiu descobrir um caminho tão interessante pro questionamento que tivemos no começo dos ensaios sobre as perguntas que o Próspero fazia pra ela, verificando se ela estava ouvindo, prestando atenção. Ela estava super envolta no seu estado, na situação, e por vezes fechava os olhos, dando a impressão de estar sofrendo com o que ouvia, ou imaginando o que o pai falava mas, ao mesmo tempo, também gerando essa dúvida na plateia de ela estava de fato escutando. É bonito ver o crescimento da Paula ao longo desse processo, o aprofundamento da compreensão do texto e da linguagem que estamos experimentando.
Ao final do trabalho, ela fez alguns comentários muito preciosos. Disse que esse volta ao Shakespeare foi muito importante, já que ela conseguiu sentir o exílio através das palavras do Shakespeare. Também falou que essas palavras nos servem, que poderíamos fazer todo o espetáculo sobre o exílio usando o texto shakespeariano.
E é a mais pura verdade. É incrível como o velho bardo sempre nos aponta respostas!
Por fim, só pra registrar um momento muito bonito do trabalho em relação a você, Beloca. Enquanto a sua mãe fazia os marinheiros, com muita gritaria e movimentação intensa, em diversos momentos você reproduzia o que ela estava fazendo, muito lindinha! Mesmo tendo pego um pouco de movimento, consegui fazer um registro muito bonito desse momento.
P.S.: Aos leitores que acompanham com frequência este blog, informo que falta o relato de dois ensaios (dias 04 e 10) e dois trabalhos de mesa (dias 09 e 11), que estão atrasados, relatados pela metade, que vou atualizar em breve. Para não ir acumulando e perdendo o frescor do relato, resolvi começar o que falta pelo mais recente, e vou completando os outros em seguida.
Ufa!
Já estava pensando: onde foram parar os números 13 e 14? hahaha.
Lendo o relato desse ensaio percebi que é difícil tentar entender – pelo menos para mim – como é essa história de a Paula fazer todos os personagens…! Na minha cabeça sempre fica a ideia de uma coisa meio esquizofrênica, mas tenho certeza de que deve ser mais interessante do que isso!
Fê, quando você se refere à espírito, você quer dizer os contra-regras ao estilo do Les Ephemeres e do Tambores sobre o dique?
Ah, e uma pergunta de cunho prático: até quando vai a estadia de vocês por aí?
Beijos,
Di
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Oi, Di! Não temos nos desesperado com essa da coringagem, mas é fato que é possível encontrar formas interessantes de trabalhar, no entanto mais um ator ampliariam imensamente as possibilidades cênicas. Os espíritos são os contra-regras, sim. Semana que vem seguimos pra Itália, pra trabalhar com a Francesca. Passamos duas semanas lá, depois uma última semana de volta em Paris pra fecharmos essa etapa, e aí voltamos pro Brasil, dia 18. Beijo!
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Fernando, tenho acessado ao blog. Fiquei bastante interessada pelo trabalho/rotina de você aí com Maurice. Ele é um poço profundo de ensinamento né? Diga a ele que o Recife o quer muito bem. E que Ivo Barreto, que ele chama de ” velho macaco”, na verdade chamando-o de macaco velho de teatro … manda abraços calorosos!
Sucesso nessa empreitada de vocês!
Evoé!
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Coisa mais linda Belinha gente… kkkkkkkkkkkkkkkk rindo muito com essa foto!
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Meus queridos amigos, cada relato que leio é absolutamente emocionante. Quando Fernando menciona o quão bonito é ver o crescimento da Paula ao longo desse processo, eu fico imaginando o quão incrível é o crescimento de vocês todos!!!! Isso me parece estar sendo muito precioso. Muito enriquecedor para todos vocês. Um processo criativo com tamanha qualidade de pesquisa, sendo vivenciado num processo de imersão em outro país, outra cultura, e tudo isso temperado com sal do exílio, que sem dúvida está muito presente (para o bem e para o mal) nesse dia-a-dia de vocês. E como se ainda não bastasse esse processo todo com um diretor e uma atriz que respeito imensamente, ainda tem Belinha, essa figura inacreditável, totalmente lúdica, costurando os retalhos todos, atrapalhando, puxando o tapete, obrigando Paulinha a virar equilibrista de pratos, discutindo nas reuniões, mostrando a Paulinha como é que se faz o movimento direito (hahahahaha… não podia ficar sem essa!! …E Fernando achando que Belinha estava ‘imitando’ a mãe!!?? Hahahaha…), e vocês pondo ela como destinatária dos relatos…. É demais!! É a cereja do bolo!!!! Parabéns, parabéns, parabéns meus amigos! Por aqui vou acompanhando com muita atenção o horizonte, à espera desta grande tempestade que se aproxima. Um beijo bem grande.
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