Belinha, dia de lidar com a primeira despedida: fizemos o nosso último ensaio no L’Épée de Bois. O Maurice chegou mais cedo e já levou a mesa e outros elementos que não iríamos trabalhar pro Soleil, então o clima de fim de uma etapa já se estabeleceu assim que pisamos na nossa sala de ensaio.
Decidimos seguir na cena da Miranda com o Próspero, já que só fizemos uma vez ontem, e o Maurice disse que, hoje, iria vestir um figurino de Próspero. Foi ao Soleil buscar coisas, enquanto a Paulinha se aquecia, e quando voltou vestiu roupas brancas, uma peruca branca rastafári e uma espécie de bandana. De fato, essa atenção à preparação da cena, à concepção de um figurino que ilustre a ideia da personagem e dê ao ator a sensação física do figurino como suporte pra cena, e todo esse cuidado que o Soleil tem e o Maurice exige de nós, faz toda a diferença.
Conversando com o Maurice essa noite, falamos muito sobre como é a formação e as condições do trabalhador de teatro na França, e em específico como funciona o Soleil, nos mais diversos aspectos. Uma coisa que me chamou muita atenção, nessa residência que vem sendo preenchida por experiências das mais diversas naturezas (como essas conversas no fim do dia, à mesa, regada por um bom vinho ou, como foi o caso, uma cachacinha), foi o relato sobre como é o dia-a-dia dos processos de criação do Soleil. Eles chegam ao Soleil às 8h30 da manhã, e não tem hora pra sair. Em geral, isso acontece por volta das 21h, 22h. Passam o dia todo lá, mas o ensaio em si começa por volta das 15h, 16h. Antes disso, fazem leituras, conversam e, principalmente, fazem toda a preparação para as improvisações: cenário, figurino, texto, etc. Acontece mais ou menos da mesma forma como fazemos, claro que numa escala muito (MUITO) maior, com uma estrutura muito melhor também. Mas a ideia é exatamente a mesma. Essa é uma etapa fundamental pra forma como eles trabalham, uma vez que a criação do ambiente pro ator vivenciar o que está fazendo é condição sine qua non pra que a poética do Soleil aconteça. Ah, apesar desse esquema de imersão total, eles trabalham quatro dias por semana, e folgam de sexta a domingo. Achei essa ideia super interessante, tenho a impressão que rende muito mais do que 4, 5, 6 horas de trabalho por dia, já que dá o tempo necessário pra esse “assentar de poeira” e de entrada no clima do trabalho, e começar com as dez! Quem sabe no nosso próximo processo?
Bom, seguindo com o relato do trabalho, enquanto eles se preparavam pra cena, eu fiquei responsável por propor um corte de texto, já que a cena estava muito longa pro que queríamos. Assim o fiz, e passamos uma vez a cena com a mesma estrutura de ontem à exceção, como já disse, do figurino do Maurice, que fez toda a diferença, tanto pra forma como ele fez o Próspero, como pra forma como eu vi a cena.
A cena, que agora foi até o momento em que a Miranda dorme, já que com os corte ficou num tamanho mais enxuto para irmos até o final aconteceu em três momentos distintos: primeiro, Miranda caminhava conversando com um Próspero imaginário, enquanto o Maurice fazia o espírito, a acompanhando com os bichos (mas, ainda assim dava o texto); depois, quando o Próspero pedia, a Miranda sentava na plataforma giratória, e ela ficava com a borboleta, e o Maurice agora fazia o Próspero mais efetivamente, manipulando a serpente; por fim, a Miranda saía da plataforma, e eles caminhavam de braços dados, com o Maurice mantendo a “personalização” do Próspero.
Em seguida, refizemos a cena, mas desta vez substituímos a plataforma giratória – aquela improvisação de uma mesinha com uma mesa maior por cima – por um banco giratório com rodinhas normal, como uma dessas cadeiras de escritório, mas sem o encosto. Isso deu muito mais dinâmica à cena, já que além de girar, o Maurice também pôde deslocar a Paulinha quando estava sentada. O Maurice também propôs mais cortes no texto, mais radicais, mas deixou claro que não se tratava de uma proposta concreta de corte, apenas fez isso para experimentarmos a cena com uma dinâmica diferente, mais ágil, e de fato funcionou, apesar de termos perdido informações importantes que precisamos dar conta de reestabelecer numa versão final, caso a cena vá pro espetáculo. Além desses ganhos, e de obviamente eles estarem a cada passada mais à vontade com o texto e a situação, ou seja, vai-se sofisticando a cena, acho que não tivemos nada mais de significante nessa passagem.
No começo do ensaio, tínhamos comentado como, ontem, os bichos foram importantes pra construção da cena, como eu já tinha comentado no post anterior. Parece que é a concretização do que o Maurice tanto fala da necessidade do personagem estar fazendo uma ação. No entanto, hoje ao terminar a cena, observamos também que o último momento, em que os dois voltam a caminhar, os bichos atrapalham mais que ajudam, pois nesse instante acabam distraindo a atenção, ao invés de convergir, como acontece antes.
O ensaio, no fim, durou pouco hoje. Como desde a semana passada temos um tempo mais restrito, porque a equipe técnica do L’Épée está muito gentilmente abrindo mão dessas quatro horas diárias do espaço, já que eles estão trabalhando nela, e hoje tínhamos que desmontar todo o circo, tirar as fitas do chão, recolher todos os elementos que trabalhamos nesse período e organizá-los – parte voltou para o Soleil, já que não estávamos mais usando, parte foi pra sala de ensaio do Soleil, onde trabalharemos na semana que vem e depois da volta da Itália, e parte trouxemos pra casa, porque também não estamos mais usando –, dar uma boa limpada na sala e prestar nossa gratidão a esses (aproximadamente) 70m2 que nos acolheram e proporcionaram semanas de um efusivo ambiente criativo. Ao Antonio, Miguel, e todos do L’Épée, nosso muito, mas muito obrigado mesmo! Ainda fomos surpreendidos que nem os gastos com energia elétrica e calefação, que tínhamos combinado de arcar, eles vão nos cobrar! Generosidade sem tamanho! Combinamos que, como esse não é o melhor momento pra eles, quando voltarmos na Itália vamos fazer um almoço para toda a equipe, provavelmente uma moqueca.
Merci beaucoup! Muito obrigado! Muchas gracias!
Paula, Fernando e Belinha estou amando acompanhar a aventura de vocês. A paixão, a coragem, a dedicação, as descobertas, os novos amigos e fico feliz quando vejo que constatam, como eu sempre constatei desde que cheguei aqui em Paris, que a generosidade existe e que o clichê de francês antipático não passa de clichê. Estou ansiosa para ver o espetáculo, dessa vez irei para a estreia lá em Natal. Pena as nossas vidas e nossos projetos por aqui não nos permitirem um contato maior, mas quero vê-los antes de voltar ao Brasil, tô te devendo um bolinho e quero apertar as bochechas da Belinha…Grande abraço e parabéns a vocês pelo projeto. Se precisarem de algo, que eu saiba e possa fazer, contem comigo!
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Deolinda querida, pecebi inclusive que esqueci de citar o nosso feliz encontro quando falei sobre a segunda vez que assistimos o Macbeth! De fato, fomos muito bem tratados no L’Épée, claro que primeiramente pela relação deles com o Maurice, mas depois isso se estendeu a nós. Acho que nosso reencontro parisiense não vai dar certo, porque partimos depois de amanhã pra Itália, pra segunda etapa dessa residência e só voltamos dia 2! Domage… Mas esse bolo e essas bochechas ficam pro Brasil, quem sabe na nossa estreia! Abração e obrigado pelo carinho e disponibilidade!
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Obrigada, querida!
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A sensação q eu tenho, Yaima, é que essa disciplina que o Soleil carrega para a existência deles, reflete demais no quão excelentes tecnicamente eles são nos espetáculos, O cuidado com cada objeto, chegar cedo e dedicar esse tempo com leituras, organização e preparação joga o trabalho deles para outro patamar! Não há como negar… Isso é fundamental e fica claro desse jeito que eles depositam todas as fichas neles mesmos. Muito lindo, galera!
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Não tenha dúvidas, Duds!!! Claro que são histórias, ambientes e condições muito diferentes, mas eu quero muito que conversemos com bastante calma na nossa volta, para pensarmos o que essa nossa experiência pode contribuir pro grupo! Bj!
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Clóóro!
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Maravilha, Fernando!!! Com toda a certeza essa experiência de vocês vai trazer muitos e muitos reflexos pra cá. Isso é ótimo, é inevitável e, eu também diria, muito bem-vindo!!
Quanto ao trabalho, companheiro, pra mim o processo de Nuestra Senhora foi um divisor de águas da forma como eu via uma montagem teatral (e não só). E , é claro, sem surpresa alguma, percebe-se claramente que esse processo de trabalho d’Os Livros de Miranda bebe da mesma fonte. Acho isso espetacular, e é o que empolga mais nas leituras dos relatos de trabalho em si. Muito bom, Japa. Que venha a Itália!!
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