Meus dias em Firenze

Belinha, você e seu pai já dormem, e eu estou dentro do banheiro com a porta fechada, pra que vocês não acordem com o meu barulho, pois finalmente estou escrevendo sobre os nossos dias aqui em Firenze, e ao mesmo tempo escuto as músicas do trabalho de ontem.

Devo dizer que os ares de Firenze me renovaram com relação ao trabalho, meu amor, ao nosso dia-a-dia… acredito que estamos realizando um segundo sonho estando aqui, o primeiro foi e ainda será em Paris com o Maurice, o Soleil, os novos amigos… Agora estamos no nosso segundo sonho, na Itália, quebrando nossa rotina – que foi tão bem vinda em Paris – em meio a uma cidade muito agradável, com pessoas simpáticas, e com a oportunidade de trabalhar com Francesca em sua casa.

Hoje durante o trabalho me bateu uma coisa, que pode parecer algo bobo, mas que pra mim foi importante, pois quando eu era adolescente sempre via minhas amigas e amigos terem ídolos, muitas vezes cantores pra quem eles escreviam cartas apaixonadas e quilométricas, e eu que não passava por isso, sempre sentia uma inveja boa desse sentimento, porque achava incrível ver como alguém podia se apaixonar tão loucamente por alguém que admirava, conhecendo ou não pessoalmente. Bom, acredito que não vou mais passar por esse tipo de paixão juvenil, mas por outro tipo de paixão sim, que me faz muito bem, e que me fez perceber quem são os meus ídolos, ou melhor, pessoas por quem tenho uma incrível admiração, e que me inspiram como pessoas, como artistas… Minhas duas famílias, meus companheiros de grupo, meus poucos amigos, autores que li, artistas que conheci… Bem, achava que não seria, mas percebi que a lista é longa. Que bom. Existem pessoas muito especiais no mundo, meu amor, e você já conhece boa parte delas e ainda irá conhecer mais.

Ah! E me desculpem os leitores se não estou indo direto pros relatos de trabalho, talvez em outro post eu consiga ser mais objetiva, pois embora esse ato de escrever sobre o trabalho esteja sendo rotineiro, nem sempre foi. E talvez esse post seja um pouquinho maior que os outros, pois vou juntar vários dias aqui.

Sobre a oficina…

No primeiro dia além de me apresentar para a turma, eu falei também da minha insegurança quando o trabalho era vocal. É como se eu achasse que não vou dar conta de fazer uma voz boa pra um personagem, ou cantar uma música, e acho que isso se deve ao fato de antes de entrar no grupo, mesmo tendo feito faculdade em artes cênicas, eu nunca ter tido um trabalho de voz específico.

Claro que tenho consciência também do quanto aprendi nesses anos, trabalhando com tantos artistas diferentes, e cito aqui aqueles que fizeram um trabalho mais direcionado ao canto e a voz, que foram Ernani, Marco, Babaya e Francesca, e me deram base e abriram muitos caminhos dentro de mim e fora. Agora, escrevendo sobre o que falei no primeiro dia de oficina, sobre a minha insegurança vocal, muito encorajada pelo trabalho com a Francesca, percebo que ela faz parte só de um discurso antigo que eu uso pra me justificar, mas que não faz parte da artista que sou hoje, em crescimento, precisando trabalhar a minha musculatura vocal, mas que já tem mais consciência do trabalho.

O oficina da Francesca, pra mim, foi além da voz, foi libertária. Tem a ver com nossa relação de dar e receber do outro, de contar e escutar também do nosso interlocutor, dar o tempo de ser verdadeiro pra comunicar! É através da nossa imaginação do espaço que a voz vai saindo, comunicando, de forma natural, sem precisar pensar tecnicamente no nosso sistema respiratório, na modulação da laringe. Ao menos, comigo foi assim. Aos poucos eu fui tomando consciência do que estava acontecendo no meu diafragma, mas pra falar uma nota, era preciso que eu não me preocupasse com isso, mas sim que estivesse interessada em contar, traçar uma dramaturgia pros meus interlocutores, estando presente corporalmente e me utilizando de gestos que ajudavam a contar a história.

Não estar ansiosa pra acertar os exercícios foi essencial pra mim, e acho que o trabalho com o Maurice, sobre o tempo que a cena pede, fez a minha ficha cair: a importância é estar presente vivendo o que a personagem quer contar, o que faz. E em seguida nas instruções de Francesca, de que o importante é estar no presente, como você Bela, que não está relembrando e vivendo do passado e que ainda não está projetando o futuro. Essa tranquilidade me permitiu ser mais generosa comigo e ir respondendo as instruções que eram dadas.

Abaixo, cito algumas anotações que fiz de instruções da Francesca – não exatamente com as mesmas palavras, que talvez não fiquem tão claras pra quem não conhece o trabalho dela – que têm servido durantes os meus estudos em casa:

  • Dar e receber a respiração de forma natural, como bebê;
  • Atenção com a postura, não levantar o queixo demais, e nem precisa colocar o corpo pra frente. Mas deixar disponível o espaço da vontade, abrir o nosso osso entre os peitos.
  • Dar e receber devem ter a mesma importância;
  • O corpo precisa estar aberto para os interlocutores;
  • Não fechar a boca durante o canto, para dar continuidade a dramaturgia. Quando fechamos a boca, perdemos nosso interlocutor. Há uma morte no que estamos contando, deixamos buracos.
  • Geralmente é no espaço vazio que acontecem as melhores invenções.
  • Pensar em contar, não em cantar.
  • O espaço não está só fora, mas dentro de mim. Existe o espaço periférico, o não visível e o real.
  • O gesto do garçom como exemplo, pois ele é generoso, se faz presente pra servir e escutar. Nosso gesto precisa ser de solidariedade e não de indiferença.
  • Um conto deve ser importante do começo ao fim. Todos os detalhes são importantes.
  • Respeitar o tempo do pensamento e o tempo da palavra.
  • Criar condições físicas e narrativas pra falar as notas.
  • A presença deve ser maior que a vontade.

Sobre os três dias de trabalho…

Começar o primeiro dia de trabalho em cima do nosso material conversando com Gabriel, foi muito bom, pois além da saudade que estávamos dele, me sinto muito lisonjeada de poder conversar com um mestre tão querido, que tem muito carinho pelos Clowns, e tem um olhar muito especial e cuidadoso sobre o nosso trabalho, contribuindo com não só com o crescimento do coletivo, mas individual de cada participante, sempre que possível. Nosso trabalho começou com um astral ótimo! E continuou até o fim, porque saímos com muitas referências que já foram citadas por Fernando, e que me deixaram muito entusiasmada pra que chegasse o dia seguinte.

E chegou. E pela manhã tive uma aula de voz com Francesca, também baseada nos mesmos princípios que ela usa na oficina, mas dessa vez como eu estava só, e falo não só de estar sem outras pessoas fazendo a aula também, mas de estar sem você e seu pai, pude aproveitar mais pra focar mais no que eu estava fazendo. Mesmo você sendo muito tranquila, filha, muitas vezes você rouba a minha atenção, e este primeiro momento foi muito especial porque pude pensar só em mim, no que eu estava fazendo. Foi uma exploração da minha voz, entrando bem aos poucos no universo dos graves. Sai com uma voz mais limpa, sem forçar nada, feliz. E aqui vão algumas anotações que fiz dessa aula:

  • Uma imagem utilizada quando estava cantando notas graves: dar pegadas completas na areia, sem marcar só com os dedos ou o calcanhar.
  • Pra não forçar e criar tensões, lembrar do peso e da solenidade da voz grave.
  • Deixar a mandíbula relaxada, como se estivesse cansada.

A noite voltamos a trabalhar em cima do texto. Como Fê já relatou como foi o trabalho, vou focar mais nas minhas sensações. Foi um trabalho muito intenso, porque estava evocando de mim, um outro jeito de conhecer o texto, explorando cada palavra, no seu sentido, sem buscar dar expressão a palavra. E eu tive bastante dificuldade, eu não conseguia deixar que a palavra falasse só por ela, então minha fala saía cantada, sem eu conseguir mudar algo que já estava de certa forma memorizado, sem ser intencionalmente. Eu entendia o que a Francesca estava me pedindo, mas meu corpo retardava em responder. Esse foi o primeiro momento. O segundo momento, foi o que trabalhamos com Fernando falando o texto e eu repetindo, e nesse eu consegui avançar em alguns momentos, pois era um trabalho de escutar, mas repetir deixando que as palavras entrassem, fizessem sentido dentro do meu repertório de vida, e depois saíssem sem que eu repetisse o mesmo tom ou a mesma melodia que estava sendo lida pra mim. Pode parecer simples, mas pra mim, um grande desafio.

Comentei depois com Francesca como o trabalho de texto é sempre mais árduo pra mim, porque na mesa, falando apenas, e tentando dar uma expressividade ao personagem, meus comandos não respondem a voz que sai. Eu penso uma coisa, e sai outra. E um artifício que eu uso é deixar o corpo entrar junto pra criar essa voz, essa expressão. Sei que isso não é mau, me ajuda, mas acho que esse trabalho da Francesca, junto com o trabalho da Babaya, me possibilitam entrar e encarar o verdadeiro sentido do texto e depois dar expressão, e é algo a ser feito com muita paciência e persistência, pra que eu não use gestos ou ações demasiadas pra dar conta de um sentido não compreendido. Bom, saí exausta. A minha cabeça borbulhava e o meu corpo tremia, mesmo tendo feito todo o trabalho sentada. Cheguei em casa e logo fomos dormir, eu e você, Bela.

E ainda nos meus sonhos veio tempestade, pois tive um sonho que tenho desde criança, com mar, grandes ondas, às vezes grandes dunas e que fazia pelo menos uns dois anos que não tinha mais. Mas quando cheguei em Paris sonhei, e agora novamente…

Acordei um pouco mais tarde hoje, descansei, pois estava precisando. E quando chegamos na casa da Francesca à tarde, fomos presenteados com o nosso querido Ernani no Skype, que faz um bom tempo que nós não encontramos pessoalmente. Uma pessoa solar, filha. Contagiante, muito divertido e com uma capacidade de ensinar de uma maneira muito peculiar, do bem e sábia. Adorei!

Depois seguimos pro que Francesca falou que seria um trabalho mais lúdico, e foi realmente. Primeiro ela aqueceu a minha voz, sempre com essa relação da voz ser espaço, e aos poucos foi me dando instruções. Depois seguimos para as músicas. E foi muito bom, porque as músicas que ela apresentou são incríveis, uma muito divertida e poética e a outra muito delicada e profunda. Eu tive várias dificuldades, como a língua, a melodia, mas acho que essas são um pouco mais fáceis de vencer, com mais estudo em casa. Já uma terceira, acho que a mais importante, é conseguir associar o trabalho da oficina, das aulas da Francesca com quando eu vou cantar uma música, ou melhor, contar uma música. Claro que eu preciso de tempo, eu sei, tive só um dia de contato com as músicas, mas é preciso que eu esteja atenta pra utilizar e não me esquecer dos princípios e poder cantar sem tensões, ou preocupações, contar e cantar, da mesma forma como tenho avançado nos exercícios.

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7 comentários sobre “Meus dias em Firenze

  1. Paulinha, que delícia ler esse seu relato!
    E que maravilha poder ficar sempre com a imagem de você o escrevendo quase que clandestinamente na madrugada, no banheiro da suíte! hahahaha!
    ADOREI esse detalhe. Por favor, sempre descrevam onde e quando estão escrevendo! 😀

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      1. Não era uma suíte, Di, mas o banheiro do apartamento que estamos. É bem pequeno, quase um studio, e qualquer luz ou barulho na sala atrapalha quem está dormindo no mezanino. Nessa noite, fui dormir umas quatro da madrugada escrevendo o meu post, e encontrei com a Paulinha na escada. Eu achei que ela ia ao banheiro, mas às sete e meia da manhã acordo preocupado se alguma coisa havia acontecido, já que ela ainda não tava na cama e não tinha sinal de luz ou barulho embaixo! Quando abro a porta do banheiro, vejo um “bath-office” montado: o computador sobre a pia, e ela numa cadeira de frente, cantando e escrevendo post!!!!! KKKKKKKK

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  2. Paulinha que lindo! Estou adorando essa experiência de vocês…Tão bom como dividem conosco…Beijos nos três e felicidades nesse restinho de viagem…Domingo já volto para o Brasil. Nos veremos por lá…

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  3. Lindo Paulinha!!! Que sonho, que oportunidade ímpar ter essa atenção da Francesca e o melhor… TEMPO! Fico sempre pensando nesse trabalho vocal quase como uma “virtuose instintiva”, porque você não sabe exatamente o mecanismo físico para acionar a intenção que a palavra pede, ao mesmo tempo que você precisa estar muito consciente de que isso não é puramente técnico. Muito doido, imagino a dificuldade que você está passando.
    O bacana disso tudo é a percepção de como a palavra transforma o corpo inteiro pelo contar, como você bem disse, no PRESENTE. Ei, barra pesada, galera!
    Em tempo, também adoro quando você escreve aqui, porque dá uma impressão mais de dentro pra fora também, de como você se sente, de como é que acontece ou não acontece, e eu consigo entender detalhadamente os processos pelos quais você passa como atriz. Claro que não invalida os “de fora para dentro” feitos por Fernando, pelo contrario, fecham a ligação!
    Adorei o dia de hoje e to morrendo de saudade de vocês! Nesse fim de semana tivemos dias muito felizes e lamentei muito vocês não estarem conosco! A temporada do espetáculo tem sido um presente pro Barracão!!!! 😀

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